terça-feira, 3 de setembro de 2013

O estelionato religioso

                    Semanalmente, perto de 3 mil atendimentos são realizados por João Teixeira de Farias, ou como é conhecido em varias comunidades espíritas e programas de televisão, ‘João de Deus’. Seus atendimentos se baseiam no que se intitula “cirurgia espiritual”, para as mais variadas síndromes que acometam pessoas que, dentro de um determinado e pessimista autoprognóstico, e até mesmo incauto, buscam aliviar e até mesmo livrar-se do seu acometido. Um desses casos é da austríaca Martha Rauscher, de 58 anos, que morreu na Casa Dom Inácio de Loyola, centro dirigido por João de Deus. Em busca de tratamento espiritual, Martha teria chegado a Abadiânia no final de janeiro, acompanhada de duas amigas. Ainda não se sabe ao certo o motivo da morte da austríaca – que ocorreu em 2 de fevereiro de 2012, mas a suspeita da polícia civil da cidade é de que ela tenha sofrido um acidente vascular cerebral (AVC) enquanto era atendida na casa. O caso está sendo investigado a pedido do Ministério Público.1
O que um caso como esse nos remete para uma compreensão completa de até aonde vai a disposição das pessoas se atrelarem a isso e do governo tornar a situação para si e agir conforme a legislação vigente deva agir.
O estelionato se define como “obter, para si ou para outro, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.” (Título II, Capítulo VI, Artigo 171)2. Com esta premissa em mente, não é difícil analisar que este artigo abrange tranquilamente uma gama enorme de ações provenientes do paradigma religioso. Daí então o chamaremos de ‘Estelionato religioso’3 (termo esse não criado aqui e perdido pelas auguras das sistemáticas publicações contra este crime tão pouco creditado), pois sua especificidade em várias ações eclesiásticas – como já dito – convém também sua abrangência para vários impropérios destes.

O estelionato como charlatanismo
Ao se fazer por meio fraudulento uma ação direta contra outrem, fica claro que a intenção só pode ser possuir vantagens sobre este ou outros, com a demonstração da ação. Foi isso que João de Deus fez. Pura e simplesmente. Fez e ainda o faz. Mas o cerne da atuação dele, dentro do prospecto individualista, onde poderia se colocar que o mesmo agia conforme seu determinismo, numa causa que superaria uma ocorrência como a de Martha Rauscher, é inquestionável que estas ações ocorreram e o mesmo deve responder por elas. Suas ações remetem não apenas ao artigo 171, mas mais diretamente ao Artigo 282, a saber, “Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites” – este senhor é analfabeto (dito isto é como forma de suplementar o contexto). Há ainda os Artigos 283 (“Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível”) e 284 (“Exercer o curandeirismo”), onde ambos se aplicam às ações deste senhor de maneira explícita. Todas estas leis se põem com o intuito de evitar praticas que levem ao incauto da esperança pessoal, pois a mesma não pode ser suplantada quando se há a profilaxia de quaisquer males que haja na pessoa.
O fato de que alguém possua um problema aparentemente irresolúvel não pode dar o direito de outro se aproveitar, mas o axioma desta situação é exatamente este: esse método não existiria se pessoas não se vissem necessitadas disto. E isso acaba remetendo, numa proporcionalidade absurdamente grande, a tragédias como com a senhora austríaca, num caso especificamente médico: falta de assepsia, uso irregular de métodos provavelmente nada estudados sobre o que se fazer e não se fazer no corpo humano, isso é o curandeirismo.

O milagre
Ao compreender melhor o que se cita nos artigos 283 e 284 acima citados, podemos perceber outro arquétipo da religião: as curas milagrosas. São comuns ações que impliquem, por parte de lideres doutrinários e muitas vezes carismáticos, na ‘cura de males’ através de ações inócuas, como a simplicidade da reza, até ações mais diretas destes, vistas como exorcismos, pregações eloquentes e cheias de trejeitos, convencimento em massa de dada informação errada ou até mesmo mentirosa. Ações como estas não são exclusividades das igrejas neo-pentecostais (apesar de ser uma pratica muito mais utilizada como propagação de sua doutrina fiduciária, principalmente no Brasil e nos E.U.A. – maiores países pentecostais do mundo4), mas durante muito tempo foi comum – e é até hoje – a prescrição de orações em pequenos pedaços de papel envoltos em capsulas ou mesmo simplesmente amarrados, e os mesmos ingerido pelos fiéis, que juravam à todos os santos que sua acreditada cura havia se dado por este motivo.
Essa crença costuma postular pela não aceitação de tratamentos convencionais – ou pelo menos o interpelando como complementar à ritualística – mas que possuem uma metodologia de eficácia comprovada efetivamente. As pessoas que procuram então esta “alternativa”, mas não abandonam seus tratamentos corretos curiosamente parecem demonstrar certo crescimento no quadro geral, mas isso apenas indica que o tratamento em si faz o efeito desejado, e a aplicação do paciente com relação a horários, quantidades de medicamentos corretamente aplicados e sua regimentação nos alimentos e exercícios é a aplicação mais impactante da fé. Ou seja, isso é basicamente ter fé que o tratamento vai resolver (e com o auxilio divino) e fazer por onde este corresponda, mas que se fique claro que isso não é e nunca foi exclusividade dos beatos5.

O dízimo
Este é por si só um cancro malévolo que se consta na pratica religiosa brasileira, e com um furor quase que incompreensível nestes últimos anos. E aqui, novamente, vemos artigos anteriormente citados sendo ricamente apresentados nas ações de déspotas que se incitam contra quaisquer ideias que emergem contra esta prática.
Ao se fazer uma analise em cima das ideologias doutrinárias das três principais vertentes religiosas no mundo, postadas em seus respectivos livros sagrados (cristianismo, islamismo6 e hinduísmo7), nota-se uma curiosa falta de indicativos com relação ao termo específico ‘dízimo’, onde no Corão (livro sagrado islâmico) o mesmo possui a conotação de tributo, mas sem especificar muito mais do que isto. Já no hinduísmo sequer cita qualquer termo que possua equivalência.
Mas o dízimo possui uma conotação mais explicita aos cristãos: dar de grado para a justificativa do desapego material. Pelo menos esta é a pregação mais prostrada para lhe dar ênfase. Dar o dízimo é um conceito do Velho Testamento. O dízimo era exigido pela lei na qual todos os israelitas deveriam dar ao Tabernáculo/Templo 10% de todo o fruto de seu trabalho e de tudo o que criassem. Alguns entendem o dízimo no Velho Testamento como um método de taxação destinado a prover pelas necessidades dos sacerdotes e Levitas do sistema sacrificial. Já no Novo Testamento não se determina explicitamente uma dada porcentagem de ganhos que deva ser separada, dizendo “apenas” se dar “conforme a sua prosperidade”. A igreja cristã basicamente tomou esta proporção de dízimo do Velho Testamento e a incorporou como um “mínimo recomendado” para a oferta cristã.8
Mas a incoerência começa quando a propagação desta começa a ser imputada aos membros como forma não apenas do que se pareceria o mais correto, como manutenção dos templos, acomodações e despesas em geral (apesar de certas vertentes cristãs a colocarem somente para isso) mas determinam  como uma renovada e contemporânea ‘indulgência’, que celebraria a “salvação das almas dos fiéis”.9 Mas este processo pode – e deve – ser enquadrado no conceito de estelionato, quando a prostração se dá da maneira última citada. Casos diferenciados e eloquentemente esperançosos podem ser encontrados, como quando a Igreja Universal do Reino de Deus foi condenada a devolver o dizimo ofertado pelo “milagre não ter ocorrido”. O caso do motorista Luciano Rodrigo Spadacio, à época com 19 anos, começou em 1º de janeiro de 1999, quando foi abordado por um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. O pastor o teria convencido a se desfazer de seus bens materiais e entregar o que arrecadou para a Universal. O motorista, motivado pela ‘conversa’ com pastor, vendeu seu único bem, um Del Rey, conseguindo R$ 2,6 mil reais e entregou ao pastor. O sacrifício estava feito, faltava a recompensa. Dias depois, Luciano se arrependeu, se vendo como vítima da fragilidade e do desespero por conta de dificuldades financeiras. Foi ao banco e conseguiu sustar um dos cheques, no valor de R$ 600 reais, que entregara ao pastor. A mesma sorte não teve com o segundo, de R$ 2 mil. Alegando ser vítima de gozações e chacotas, o motorista entrou com ação de indenização, por danos morais e materiais.10
Deve-se então ficar atento a posicionamentos com relação à esta prática, não pelo simplismo da individualidade retorquida do religioso ‘dizimista’, mas  pelos prejuízos claramente observáveis à legislação e a que se denegreçam pessoas que não participam desta descalabro sejam tosquiadas do convívio social. Não podemos esperar muita coisa diferente em doutrinas que citem a própria palavra ‘dízimo’ 56 vezes!11
As mais variadas formas de se subjulgar pessoas e grupos não são novas, nem possuem vertentes atuais, e as religiões sempre foram – e são até hoje – meios muito eficazes de se alienar, seja pelos métodos, promessas, imposições de muitas maneiras. Aqui apenas demonstramos que o estelionato é a nomenclatura mais coerente com determinadas práticas infelizmente muito difundidas no meio religioso. Desde casos em que a pessoas deixe sua atenção voltada para longe de sua própria saúde até em casos que é a simples extorsão mesmo.

11 Bíblia Sagrada

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