domingo, 5 de abril de 2015

ARTE E ÉTICA


Ao Pirula, de quem sou fã.

Frequentemente, os artistas são envolvidos em polêmicas por conta de suas obras de arte terem ferido a sensibilidade de algum grupo social ou por levantarem problemas com os quais a sociedade em que estão inseridos não lida bem. Exemplos: a birra do cardeal Dom Orani Tempesta e de Marco Feliciano contra os vídeos do canal “Porta dos Fundos” problematizando a fé cristã. Outro exemplo: um escritor de novelas da Globo queria que uma atriz mirim representasse cenas em que sua personagem, agindo como uma pequena psicopata, causaria problemas à sua família. (Não me lembro mais o nome do autor nem da novela.) O Juizado de Menores proibiu que ele desenvolvesse essa ideia por causa de um cipoal de leis que desaguam na questão da maioridade penal. E aí alguém lembrou que, com quase a mesma idade, em 1993, Macaulay Culkin, aos 13 anos, interpretou o psicopata do filme “O Anjo Malvado” (“The Good Son”). Porque as leis americanas assim o permitiram.
Quando se conta uma história, busca-se uma verossimilhança. Até mesmo em histórias fantásticas. Filmes como “...E O Vento Levou” e "Praia do Futuro" contam histórias que poderiam muito bem ter acontecido de verdade, ao contrário de obras como “O Senhor dos Anéis”, mas mesmo entre feiticeiros com poderes sobrenaturais e árvores que andam e falam, a verossimilhança tem de estar presente: as emoções dos personagens precisam ser verossímeis, passíveis de aceitação.
Darei um exemplo de verossimilhança numa literatura fantástica. No capítulo 14 do Evangelho de Mateus, a partir do verso 22, vemos o episódio de Jesus andando sobre as águas em meio a uma tempestade para encontrar os discípulos indefesos e amedrontados num barco. Para um fiel, esse episódio é verossímil porque Cristo, como filho de Deus, tinha o poder de cancelar as leis da Física. Mas o escritor do Evangelho era um mestre na arte de contar estórias. Se fosse possível a alguém andar sobre as águas e transferir esse poder para outra pessoa, tudo aconteceria dessa maneira. Pedro duvida diante do fato inusitado e pede uma prova: “Se for você mesmo, manda que eu vá ao seu encontro andando sobre as águas”. Jesus diz: “Vem” e Pedro vai e consegue andar sobre as águas. Mas a força dos ventos e a agitação das águas fazem com que ele se sinta inseguro e ele afunda. Nós nos sentiríamos da mesma forma se estivéssemos no lugar de Pedro. Porque, na nossa vida diária, muitas vezes nos sentimos inseguros diante de problemas que podemos superar. É comum fazermos tempestade em copo d’água. Uma vez estabelecida a empatia, a comunhão de sentimentos entre os personagens e o público, os absurdos podem ser sanados com a célebre frase de Chicó: “Não sei, só sei que foi assim”.
O problema está quando não ficam claros os limites entre ficção e realidade. O bom contador de histórias burla esses limites de modo a que seu conto pareça verdadeiro e será encarado como verdadeiro durante o tempo em que o livro for lido, a peça montada e o filme assistido. A sala de leitura, o teatro e o cinema são ambientes que contribuem para a credibilidade da ficção. Digo mais: se um ateu for convidado para ler uma página da Bíblia diante de uma plateia fiel e aceitar o convite, ele lerá aquela página como um texto revelado por Deus, pois aquela situação modificará psicologicamente sua postura diante do texto religioso.
Um caso clássico de como a ficção extrapolou seus limites foi quando, no Halloween de 1938, o ator e futuro cineasta Orson Welles fez uma leitura dramatizada do texto de ficção científica “A Guerra dos Mundos”, de H. G. Welles num programa de rádio que toda semana, naquele mesmo horário, divulgava obras de ficção. O problema é que grande parte do público não entendeu que aquilo era uma obra de ficção e acreditou que os Estados Unidos estavam mesmo sendo invadidos por marcianos, mesmo tendo o locutor narrado a invasão da rádio pelos alienígenas, o que, se fosse verdade, impossibilitaria a continuidade do programa. Terminado o programa, Welles foi ao aeroporto e só horas depois, ao sair do avião, soube do pânico que causara involuntariamente. O episódio lhe deu fama, mas diz a lenda que ele comentou: “Em qualquer país sério, eu estaria preso”. Não garanto que ele realmente tenha dito essa frase.
Dada essa necessidade de fazer o imaginado parecer real, escrever ficção é mais difícil que escrever relatórios ou reportagens. Se duvida, faça um teste: escreva duas páginas sobre a cidade em que você mora. Depois, escreva duas páginas sobre Santo Ayrolla, capital da Soraggilândia. Qual dos dois textos exigiu mais esforço mental?
Supondo que você tenha topado o desafio acima, imagine que seu texto sobre Santo Ayrolla, capital da Soraggilândia, fosse publicado numa revista literária que, rotineiramente, publica poemas e contos de autores de língua portuguesa. Imagine agora que ela fosse publicada num jornal de grande circulação ou numa revista de turismo. No segundo caso, seria impossível que alguém fosse a uma agência de viagens querendo uma passagem para curtir a lua de mel em Santo Ayrolla?
O vídeo do Pirula sobre “A desculpa do entretenimento” me fez escrever esse texto. Em 2010, visitei uma amiga em Maricá que insistiu para que eu assinasse TV a cabo, dizendo que a programação da TV a cabo é muito superior à TV aberta. Até hoje não assinei porque não gosto muito de TV. Vejo mais Youtube que TV. Mas, para me convencer da excelência dessa programação, ela me mostrou “documentários” em que supostos professores da Royal University of Sucupira afirmavam ter encontrado antigos documentos que relatavam um cataclismo ambiental por ocasião da passagem de um certo cometa que passaria de novo em 2012 e o texto dava a entender que deveríamos nos preparar para o pior, para o colapso de nossa civilização. Bem, nada de relevante aconteceu em dezembro de 2012, mas, em outra visita que fiz a ela, a moça tentou novamente me convencer a assinar uma TV a cabo e disse que os cientistas podem anunciar a qualquer momento a existência de sereias, pois teriam sido encontrados fósseis desses animais, e também teriam sido captados seus sons e suas imagens em vídeo. Essa respeitável senhora é professora primária. Tenho medo de pensar no que ela está dizendo a seus alunos.
Como escritor, tradutor e ator, não posso defender a censura – na verdade, eu até defendo em casos extremos. Por exemplo, é preciso censurar e punir esses fariseus que vendem quinquilharias ungidas a preços astronômicos para pobres infelizes que lutam para sobreviver com salário mínimo. Eu não censuraria quem escrevesse um romance em forma de monografia contando que, durante o governo de Itamar Franco, Brasil e Argentina travaram uma guerra em que até mesmo bombas atômicas foram usadas de ambos os lados, porque a maioria de nós se lembra da época de Itamar Franco e saberia que isso não aconteceu de fato, mas exibir peças de ficção num canal que tem a reputação de produzir documentários educativos e não deixar claro que se trata de uma ficção me parece um sério desvio ético que pode ter consequências lamentáveis na formação de um público com pouco rigor crítico.
A arte não pode ser desculpa para a irresponsabilidade.

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