quarta-feira, 5 de agosto de 2015

TREM ATROPELA FRASE DE DOSTOIÉVSKI


“Se Deus não existe, tudo é permitido”. Essa é a frase mais famosa do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Certa vez, Ariano Suassuna, entrevistado pelo jornalista Roberto d’Ávila, confessou que se declarava ateu na juventude, até conhecer a obra do romancista russo. Ele então passou a aceitar a existência de Deus por ver na religiosidade a raiz de toda a ética e reconheceu, assim, a necessidade da fé em uma sociedade.

Os fatos mostram o contrário. Uma sociedade majoritariamente religiosa não é necessariamente uma sociedade mais ética. Antes mesmo que Dostoiévski formulasse sua famosa máxima, ela já era negada – pasmem! – pela própria Bíblia. O profeta Isaías, por exemplo, várias vezes desqualifica a religiosidade de seus conterrâneos judeus, por ver que, apesar da estrita observância dos ritos religiosos, a vida em sociedade ia de mal a pior: “Parem de trazer ofertas inúteis. O incenso é coisa nojenta para mim; luas novas, sábados, assembleias... não suporto injustiça junto com solenidade. Eu detesto suas luas novas e solenidades. Para mim se tornaram um peso que eu não suporto mais. Quando vocês erguem para mim as mãos, eu desvio o meu olhar; ainda que multipliquem as orações, eu não as escutarei. As mãos de vocês estão cheias de sangue.” (Isaías cap. 1, 13 a 15, edição Pastoral.)

Neste país tão religioso chamado Brasil, no ano de 1994, o pastor Von Helde, da Igreja Universal do Reino de Deus, no dia mesmo da padroeira do Brasil, 12 de outubro, chutou uma imagem de Aparecida, houve uma comoção nacional. Houve mesmo pressão para que o então presidente Fernando Henrique Cardoso cassasse a concessão da Rede Record de Televisão, emissora de propriedade do bispo Edir Macedo, líder da Universal, que veiculara o programa.

Na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, em 2014, uma travesti se mostrou crucificada para protestar contra o preconceito sofrido por travestis e transexuais no Brasil. Imediatamente, a mais do que corrupta bancada religiosa, que usa o nome de Cristo para explorar a fé e a ignorância do eleitorado e manter-se no Parlamento, clamou contra a “cristofobia” e exibiu imagens de diversos eventos ao redor do mundo para dizer que tais profanações e gestos de desrespeito a símbolos religiosos tinham todos acontecidos na mesma parada em São Paulo, simultaneamente ao protesto da atriz travesti.

Eis a comoção que acomete o povo brasileiro, tão religioso, quando alguém falta com o respeito (ou alguém que diz que um terceiro faltou com o respeito – foi o caso da travesti em questão, que é cristã – e lembremos que Cristo está muito longe de ser a única vítima de crucificação na História) a símbolos religiosos. Por outro lado, o que acontece quando seres humanos são desrespeitados?

Terça-feira, 28 de julho de 2014. Adilio Cabral, ex-presidiário, vendia doces para sobreviver. Ao contrário de tanta gente que volta a cometer crimes após sair do sistema carcerário e para lá retorna, ele buscava recomeçar a vida sem infringir as leis. Atravessou os trilhos de uma estação de trem porque, se usasse a passarela, teria sua mercadoria seria apreendida por aqueles que têm o papel de inibir a venda de doces nos veículos do transporte público. Foi atropelado. E um segundo trem passou por cima do corpo para que a viagem não fosse interrompida. Com a autorização de seus superiores da concessionário, a Supervia.

E, diante desse desrespeito a uma vida ceifada (estaria Adilio realmente morto quando o segundo trem passou por cima do seu corpo) e do vilipêndio de um cadáver, o que dizem os líderes religiosos e a bancada fundamentalista? Até o momento em que escrevo estas linhas, 5 de agosto, não ouvi nenhum pronunciamento dos autoproclamados representantes de Deus.

Esses mesmos advogados de Deus fazem um escarcéu quando alguém defende a evolução das espécies e esforçam-se para enfiar a Bíblia nas aulas de Ciências. Bem, essa mesma Bíblia que diz que o homem foi feito do barro e a mulher de uma costela do homem diz que o homem foi feito “imagem e semelhança de Deus”. A mesma Bíblia diz, em 1 João cap. 4, vs 20 que quem não ama o seu irmão a quem vê não pode amar a Deus, a quem não vê.

O fundamentalismo, expressão estreita e retrógrada da religião que corrói como um câncer a República brasileira e dissemina preconceito e intolerância entre a população, é rígido no cumprimento dos preceitos e rituais religiosos que semeiam separações entre os homens, mas, ao mesmo tempo em que é intransigente ao tentar desqualificar a Ciência, nada faz para promover a dignidade humana, ou seja, proclamar o homem como “imagem e semelhança de Deus” e repudiar todo e qualquer desrespeito à integridade da pessoa humana.

Voltaire, aquele grande herege, disse que o Deus criou o homem à sua imagem e semelhança e o homem retribuiu da mesma forma. Diz o mesmo Voltaire que, se os cavalos tivessem um deus, ele teria a aparência de um cavalo. Isso porque quem imagina deuses só pode imaginá-los à sua semelhança.

Uma enquete feita pelo jornal O DIA revelou que 60% dos que opinaram acharam certa a decisão da empresa de autorizar que Abílio fosse atropelado pela segunda vez. Esses que apoiam a degradação da humanidade de um vendedor de balas são os mesmos que bradam contra a corrupção dos governantes e clamam pela volta de Cristo. Eis a evidência indiscutível de que não há relação alguma entre religiosidade e ética.

O progresso só é possível em sociedades que reconheçam a inegável e inegociável dignidade humana. Esse é o sentido mais profundo em se apresentar o homem como imagem e semelhança de Deus. Esse é o valor maior que deve pautar as ações humanas, existindo Deus ou não.

Postado por
Edson Amaro

0 comments:

Postar um comentário

Trailer do Hangout d'ARCA